Foto: Ellen Campanharo
Redação
Nesta quinta-feira (25), é celebrado o Dia Nacional do Orgulho LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais e outros). Nos últimos anos, a comunidade LGBTI+ conseguiu algumas vitórias no âmbito legal, como a permissão para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a equiparação da LGBTIfobia ao crime de racismo.
Também houve conquistas na esfera pública, com o aumento da participação em cargos de representação política. Nas eleições municipais de 2020, por exemplo, 26 pessoas trans foram eleitas, um aumento de 225% em relação às eleições de 2016, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Em alguns locais, candidatos transgêneros conseguiram alcançar as maiores votações. Em Belo Horizonte, a pessoa mais votada da história da capital mineira para o cargo de vereador foi uma mulher trans, Duda Salabert (PDT). Em Aracaju, a pessoa mais votada em 2020 para o cargo também foi uma mulher trans, Linda Brasil (PSOL). Em São Paulo, duas pessoas transgênero foram eleitas para a câmara municipal: Erika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL).
Porém, nem tudo são flores. Muito pelo contrário. Infelizmente, em 2020, o Brasil ocupou, pelo 12º ano consecutivo, o primeiro lugar no ranking de países que mais matam pessoas LGBTI+, de acordo com dados do Trans Murder Monitoring (Observatório de Assassinatos Trans, em inglês).
De acordo com a Antra, no ano passado, houve aumento de 48% nos assassinatos de pessoas transgênero no país. E o Espírito Santo ocupa o 6º lugar no ranking de assassinatos de travestis e transexuais entre os estados, segundo dados de 2019 da associação.
“As leis não impedem que as pessoas deixem de ser preconceituosas. As leis podem até inibir algumas pessoas de exteriorizarem seus preconceitos e até mesmo criar uma sensação de amparo jurídico entre as pessoas LGBTI+, mas não são a solução para o fim da LGBTIfobia, são apenas um instrumento”, pontua o ativista de direitos humanos e do movimento LGBTI+ no Espírito Santo, Diego Herzog Peruch, que concedeu entrevista ao portal da Assembleia Legislativa.
Peruch é o atual presidente da Associação Gold (Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade), que atua há 15 anos pela efetivação dos direitos das pessoas LGBTI+ no estado. Ele também foi coordenador do Fórum Estadual LGBTI+ e conselheiro nos conselhos estaduais de Direitos Humanos e de Assistência Social. Na entrevista, ele aborda, entre outros temas, legislação, violência institucional, violação de direitos e LGBTIfobia.
Confira a entrevista:
Quais leis nacionais e estaduais foram marcos nos direitos da população LGBTI+?
Na verdade, se formos analisar a produção de leis para pessoas LGBTI+ das casas legislativas, sejam elas municipais, estaduais ou no nível federal, temos pouquíssima coisa. No nível estadual, temos uma lei de 2009, de proposta do então deputado Claudio Vereza (PT), que instituiu o dia 17 de maio como Dia Estadual de Combate à Homofobia. Em 2014, o mesmo deputado tentou aprovar uma normativa interna para que pessoas trans pudessem utilizar o nome social nos crachás, mas não teve êxito.
Uma lei estadual muito importante, aprovada em 2016, foi a da criação do Conselho Estadual LGBTI+ (Lei Estadual 10.613/2016), porém foi uma proposta do Executivo. No nível municipal, também tivemos conquistas importantes como a criação do Conselho LGBTI+ de Cariacica (Lei Municipal 5.073/2013). Foi a primeira cidade capixaba a criar um Conselho LGBTI+. Importante ressaltar que a lei foi proposta pelo Executivo.
Colatina foi uma das cidades pioneiras na aprovação de leis de proteção a pessoas LGBTI+. Em 2007, foi aprovada uma lei (Lei Municipal 5.304/2007) que penaliza estabelecimentos comerciais da cidade que discriminem pessoas em razão de sua identidade de gênero ou orientação sexual. A iniciativa foi do então vereador Genivaldo Lievore.
Em Vitória, temos uma lei que estabelece o dia 12 de março como Dia Municipal de Combate à LGBTIfobia (Lei Municipal 8.552/2013) e outra que estabelece penalidades para estabelecimentos comerciais que cometam discriminação LGBTIfóbica (Lei Municipal 8.627/2014), propostas pelos vereadores Marcelão (PT) e Luiz Emanuel (Cidadania), respectivamente. A lei proposta pelo vereador Luiz Emanuel empolgou o Movimento LGBTI+, pois Vitória, sendo capital do Estado, poderia servir de exemplo para outros municípios construírem leis parecidas.
Porém, a regulamentação da lei, que só aconteceu cinco anos após a promulgação, desconfigurou a proposta original. Diferente da Lei de Colatina, que prevê multa e até suspensão do alvará de funcionamento dos estabelecimentos que cometerem LGBTIfobia, a de Vitória só estabelece penalidades para pessoas físicas. Não podemos esquecer que todas essas vitórias foram obtidas pela articulação do movimento LGBTI+ capixaba. Por diversas vezes, tivemos que ir às câmaras municipais e Assembleia Legislativa fazer o enfrentamento direto e pressionar para que essas leis fossem aprovadas. Se a gente não fosse assim, não tinha saído nada.
Em nível nacional, tivemos, em 2001, a criação do Conselho Nacional LGBTI+, que, infelizmente, foi extinto em 2019. Temos várias normativas do SUS, INSS, MEC e outros órgãos que contribuem para a dignidade das pessoas LGBTI+. Também tivemos vitórias conseguidas no STF como o casamento homoafetivo, a retificação dos documentos de pessoas trans sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização e a equiparação da LGBTIfobia ao crime de racismo. A exemplo do que acontece nos níveis municipal e estadual, o Congresso Nacional também atua envolto em uma LGBTIfobia institucional que não permite o avanço das pautas da população LGBTI+.
Havendo um caso de desrespeito aos direitos LGBTI+, qual órgão deve ser buscado?
Não temos uma delegacia especializada para crimes de LGBTIfobia. Então, as queixas devem ser realizadas em delegacias comuns. A Associação Gold também recebe denúncias e faz os encaminhamentos para os órgãos responsáveis. Outros locais como Conselho Estadual LGBTI+, Conselho Estadual de Direitos Humanos, Secretaria Estadual de Direitos Humanos podem ser procurados para realizar denúncias de violação de direitos.
Em 2016, foi criado no Espírito Santo o Conselho Estadual LGBTI+. Qual é o papel do conselho na proteção da população LGBTI+?
O conselho é um espaço importante de construção de políticas públicas para a população LGBTI+ e de controle social das ações do Estado. As pessoas LGBTI+ que compõem o conselho podem indicar caminhos, propor ideias e participar das decisões que envolvem a população LGBTI+. Também pode ser um espaço para um diálogo intersetorial entre as secretarias de governo que compõem o conselho.
Há uma violência institucional contra a população LGBTI+? Em quais momentos isso pode ser observado?
Sim, a violência institucional existe, e, muitas vezes, passa despercebida para muitas pessoas. Por exemplo, existem muitos relatos de reclamações de mulheres lésbicas sobre consultas ginecológicas. É muito comum médicos receitarem anticoncepcionais sem perguntar a orientação sexual da mulher ou desistirem de pedir o exame papanicolau quando sabem que a mulher é lésbica. Muitos médicos acreditam que mulheres lésbicas são menos propensas a desenvolver câncer do colo de útero por não haver a penetração peniana. Isso é um equívoco, pois o HPV, que é o principal causador desse tipo de câncer, pode, sim, ser transmitido no sexo entre mulheres. Aliás, no sexo entre mulheres também pode se transmitir sífilis, herpes, clamídia e outras infecções sexualmente transmissíveis.
Na escola, quando um professor de educação física separa a turma em um grupo de meninos e outro de meninas e coloca os meninos para jogar futebol e as meninas para jogar queimada, também há uma violência, pois parte-se do pressuposto que o gosto pelo futebol seja uma característica inata aos meninos.
No mundo do trabalho, por exemplo, quando não se permite que pessoas trans utilizem o nome social em crachás, é outro tipo de violência. Aconteceu com a coordenadora de ações e projetos da Gold, Deborah Sabará, quando ela trabalhou na prefeitura de Vitória. A promulgação do decreto que permitiu o uso do nome social para servidoras e servidores trans da prefeitura partiu de uma demanda levantada por Deborah. Anos depois, quando ela trabalhava na Assembleia Legislativa, solicitou ao deputado Claudio Vereza, de quem era assessora, que fosse criada uma normativa interna. O deputado levou a demanda ao Plenário, porém a maioria dos parlamentares não aprovou a solicitação. Uma situação parecida aconteceu na Ufes, em 2014, onde a provocação da aluna Natália Becher levou o conselho universitário a aprovar a inclusão do nome social nos registros acadêmicos.
Como é o acolhimento de quem denuncia uma violação aos direitos LGBTI+ no Espírito Santo? É fácil denunciar?
Acho que não é tão fácil denunciar porque as pessoas não conhecem seus direitos. Então, quando são violentadas, não sabem o que fazer. Nos exemplos que eu citei do médico, pode ser feita uma reclamação ao conselho de Medicina. Se for da rede pública, pode ser feita uma reclamação na ouvidoria. Por isso que a Gold se coloca à disposição em receber essas denúncias e encaminhar para as autoridades responsáveis. E as pessoas já entenderam que podem contar com a Gold para isso, pois é bem recorrente chegar esse tipo de demanda.
Na Gold, a gente também trabalha muito com o diálogo. Tentamos fugir dessa cultura punitivista. Às vezes, uma conversa soluciona muitos problemas. No carnaval passado, recebemos a denúncia de que a Liga das Escolas de Samba do Grupo Especial (Liesge) não estava permitindo que mulheres trans se inscrevessem para o posto de rainha no concurso da família real do carnaval capixaba. Eu e Deborah fizemos uma reunião com os dirigentes da liga e chegamos a um acordo que agradou as duas partes. É claro que tem casos e casos. Já recebemos uma denúncia de uma pessoa trans que perdeu a visão enquanto estava presa e, com a ajuda da Defensoria Pública, judicializamos o caso e a pessoa foi indenizada.
Por que a legislação não tem bastado para proteger a população LGBTI+? Qual é o papel do preconceito na violação a esses direitos?
As leis não impedem que as pessoas deixem de ser preconceituosas. As leis podem até inibir algumas pessoas de exteriorizarem seus preconceitos e até mesmo criar uma sensação de amparo jurídico entre as pessoas LGBTI+, mas não são a solução para o fim da LGBTIfobia, são apenas um instrumento. A LGBTIfobia é um problema estrutural, faz parte da formação sócio-histórica do Brasil. Desde quando éramos uma colônia de Portugal os corpos LGBTI+ foram perseguidos e essa mentalidade colonial permanece incrustada na sociedade brasileira. Precisamos desconstruir esse pensamento colonial.
Além da violência física, mais fácil de ser provada, a quais outros tipos de violência a população LGBTI+ é submetida cotidianamente?
Há a violência psicológica, que é qualquer ato que cause dano emocional e diminuição da autoestima da pessoa. Ela causa nas pessoas LGBTI+ medo, pânico e culpa. A violência moral, que é a tentativa de destruir a imagem e honra de pessoas LGBTI+. Podemos citar a calúnia, difamação e injúria como violências morais. A violência sexual, que é obrigar a pessoa a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada utilizando força, coação, ameaça. Existem muitos casos de mulheres lésbicas e homens trans que são vítimas de estupro corretivo. E a violência patrimonial, que é a destruição, retenção ou subtração de bens. Por exemplo, um pai que quebra o celular do filho para que ele não converse com o namorado.
Quais políticas públicas ainda precisam ser instituídas para a promoção da igualdade e dignidade da população LGBTI+ brasileira?
Acho que precisamos construir políticas que contribuam para a desconstrução dessa moral cis-heteronormativa. Temos algumas leis e diversas jurisprudências que têm o objetivo de garantir a dignidade de pessoas LGBTI+, porém, na hora em que vamos acessar essas políticas, esbarramos em profissionais despreparados que não concretizam o que está no papel. E isso se deve à LGBTIfobia estrutural que existe no Brasil. Precisamos vencer esse obstáculo para progredir.
Fonte: Ales